O governo ilegítimo de Michel Temer marca um significativo retrocesso nas poucas leis existentes que visam proteger o direito ao modo de vida e territórios das populações indígenas
Em uma área de 10ha, ao lado de uma reserva florestal, localizada em Dourados, MS, viviam cerca de 30 Kaiowás, da comunidade indígena Apyka’i. O verbo “viver” está no passado porque em 17 de julho de 2016 estas famílias, lideradas por Dona Damiana, foram expulsas de seu território sagrado pela polícia e pistoleiros contratados por fazendeiros, sendo obrigadas a erguerem seus barracos as margens da BR 463.
Desde a primeira expulsão, em 1999, estas pessoas lutam pela demarcação de seu tekohá, que hoje está em posse da Usina São Fernando, pertencente a José Carlos Bumlai, preso na operação Lava Jato. A usina, que na verdade é patrimônio da fazenda São Marcos, faz parte de um complexo de 5,5 mil hectares dedicados ao monocultivo de cana-de-açúcar para o mercado internacional. Construída com recursos do BNDES e do Banco do Brasil, após acumular uma dívida de 1,3 bilhão de reais a usina está sendo vendida para a Amerra, uma gestora de fundos norte-americana.
O caso de Apyka’i e dona Damiana representa,
nitidamente, a forma como o capitalismo vem
violentando os povos do campo na América Latina.
Foto: Thomas Bauer
O caso de Apyka’i e dona Damiana representa, nitidamente, a forma como o capitalismo vem violentando os povos do campo na América Latina. O que se verifica hoje é o aprofundamento de um avanço sistemático do capital internacional sobre a região. A crise estrutural que eclode em 2008 gera uma maior procura por territórios e recursos naturais, fazendo com que, especificamente no Brasil, a região Centro-Oeste passe a ser alvo com mais intensidade da cobiça de grandes transnacionais.
Este avanço recente torna-se mais destrutivo do que naturalmente já é ao encontrar no Brasil problemas gerados durante todo o século XX que até hoje não foram resolvidos. Criadas durante a ditadura militar, as reservas indígenas representam uma política estatal que impede o modo de ser destes povos, confinando-os em minúsculas áreas, longe de seus territórios tradicionais. Além disso, remonta desta época a utilização de mecanismos falhos para a resolução de conflitos. Mesas de negociação infindáveis, judicialização dos processos de demarcação e práticas assistencialistas do Estado são exemplos que demonstram a incapacidade dos governos de resolverem a questão.
Além disso, o governo ilegítimo de Michel Temer marca um significativo retrocesso nas poucas leis existentes que visam proteger o direito ao modo de vida e territórios das populações indígenas. A Constituição Federal de 1988 é violada sistematicamente com a paralisação dos processos demarcatórios – paralisação que se aprofunda após o Golpe, mas que se inicia ainda nos governos petistas. Ainda no campo jurídico, o Poder Judiciário já permite a revisão do processo judicial de terras indígenas já demarcadas há anos, configurando-se não somente uma violação à Constituição, mas à toda Democracia. Soma-se a estas violações o sucateamento da FUNAI, com a exoneração de funcionários, corte de verbas e provável extinção do órgão.
O cenário posto para os povos indígenas é o mais cruel possível: a negação da possibilidade de existir enquanto indígena – com todo seu modo de viver e ver o mundo – e pessoa – a naturalização da violência dentro das reservas indígenas avança a passos largos. Na verdade, não existe outra forma de caracterizar a realidade posta: os povos indígenas no Brasil vivem em um estado de guerra. É justamente por isto que o Acampamento Terra Livre, que ocorre durante esta semana em Brasília, reunindo indígenas de todo o país, é um significativo espaço de luta e resistência, que se fortalece mais ainda quando apoiado por camponeses e camponesas. O ATL ao afirmar que é necessário “unificar as lutas em defesa do Brasil indígena” deixa explícito que é somente pela unificação de toda classe trabalhadora que conseguirá superar o modelo de desenvolvimento posto.
A aliança entre Sem Terra e indígenas é crucial para o
enfrentamento ao capitalismo e combate ao agronegócio.
Foto: Eliel Freitas Jr.
A resistência dos Kaiowás pode ser exemplar para toda a classe trabalhadora. Para eles, só existe uma saída, que é a negação dos instrumentos falhos de resolução de conflitos postos pelo Estado e o enfrentamento direto ao capital, por meio das retomadas. As retomadas representam a única possibilidade real de garantir sua sobrevivência. Elas são o reflexo da busca pela autonomia deste povo, negando as respostas inúteis de governos, por mais tentadoras que possam ser suas promessas.
Por isto que a aliança entre Sem Terra e indígenas é crucial para o enfrentamento ao capitalismo e combate ao agronegócio. Mais do que aliados próximos, cabe a busca para que toda ocupação Sem Terra seja a retomada de um tekohá e toda a retomada de um tekohá seja uma ocupação Sem Terra. O dia 17 de Abril necessita torna-se um dia de luta indígena, assim como o dia 19 ser um dia de luta Sem Terra.
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – Mato Grosso do Sul