Os negócios da violência no México
Entrevista – Para a economista Ana Esther Ceceña, os massacres que vêm ocorrendo no norte do país têm estreita ligação com o projeto militarista de sociedade implementado nos últimos anos
Sílvia Alvarez da Cidade do México
Em agosto do ano passado, 72 imigrantes vindos das Américas Central e do Sul tentavam cruzar o México para chegar no país que se autodenomina “América”. O sonho de trabalhar nos Estados Unidos foi interrompido quando os jovens foram brutalmente assassinados, no estado de Tamaulipas, perto da fronteira. Nesse mesmo local, no ano seguinte, foram encontradas fossas clandestinas que guardavam 183 cadáveres. Notícias sobre assassinatos, sequestros e torturas são cotidianas desde que o presidente Felipe Calderón declarou “guerra ao crime” e colocou o exército mexicano nas ruas.
Frente a esse projeto militarista de sociedade emergiu, nas últimas semanas, um movimento nacional que culminou na Marcha pela Paz, na qual participaram 20 mil zapatistas. A marcha denunciou o assassinato de 40 mil pessoas e exigiu um outro projeto de segurança para o país, baseado no respeito aos direitos humanos.
Mas, quais são as reais raízes da violência no México? Fizemos essa pergunta à pesquisadora Ana Esther Ceceña, do Observatório Latino-Americano de Geopolítica, da Universidade Autônoma do México (Unam). A pergunta é simples, mas se desdobra em muitas reflexões: “De onde vem essa violência, eu não sei dizer ao certo, pois vem de muitos lugares. Precisaria fazer uma radiografia”, refletiu modestamente Ceceña. No entanto, ao longo da entrevista, o que fez a pesquisadora foi justamente essa radiografia, ou um início dela. “São muitos negócios que estão em jogo no México e todos implicam num enorme uso de violência”, apontou. Ao final da conversa o que ficou claro é que em todos esses negócios estão envolvidos os Estados Unidos da América.
A pesquisadora explica que, após a crise do Partido Revolucionário Institucional (PRI), criado como desdobramento da Revolução Mexicana, de 1910, e a chegada do Partido de Ação Nacional (PAN) ao poder, o México teve uma mudança de papel importante no continente americano. “Além da incorporação voluntária do neoliberalismo, há a aproximação física com os Estados Unidos. Nossa economia está imbricada com a deles, somos muito dependentes da dinâmica da economia estadunidense, mas também da política”. Para Ceceña, a política de reordenamento militar dos EUA para o seu território se estende até o México. E é na fronteira norte desse país onde começamos a radiografia.
A Fronteira com os EUA
“É uma fronteira muito vistoriada, mas eles seguem dizendo que é porosa. De algum modo é porosa, porque passam imigrantes, drogas. Mas eu creio que não passam sem serem reconhecidos. Ou seja, me parece que aí tem uma cumplicidade que não sei se só de máfias ou dos próprios governos locais. São grandes negócios os da passagem de imigrantes, passagem de armas e passagem de drogas. Isso começou a ter quase um carácter estrutural, digamos. Esta droga que vem da América do sul, que teria que passar por aqui pra chegar aos EUA, pode chegar também por mar, mas chega mais por terra. Então, essa fronteira se torna chave para isso, mas se torna chave para muitas outras coisas, por exemplo, para o mercado de trabalho irregular norte-americano.
Há 10 anos começam a dizer que é um risco, um problema de segurança nacional número um para os EUA, então começam com todas as ideias de construção do muro, de como controlar a fronteira, de que é preciso trabalhar com o corpo de segurança mexicano. Se estabelece um acordo que é parecido com o Tratado de Livre Comércio das Américas do Norte (Nafta). É um acordo de ‘segurança e prosperidade’ que, na verdade, é como um complemento do Nafta. Ou seja, a América do Norte, passa a ser não só uma área econômica comum, mas também uma área de segurança comum, o que permite que os corpos de segurança dos EUA possam estar na fronteira sul com o México. E aí é onde começa a ideia de Plan México, que logo se chama Iniciativa Mérida.”
O negócio da droga
“O negocio da droga já estava no México desde antes. Não é certo que começa recentemente. Ou seja, havia gente que cultivava marijuana desde antes. Então, não é uma novidade. A novidade é como começa a se organizar o mercado da droga, já de maneira mais estrutural, mais transnacional. Eu, evidentemente, penso que não podemos imaginar que são atores locais os que movem esse grande negócio, que é, além disso, planetário. Ou seja, não podemos pensar que um mexicano de uma comunidade aí perdida, de repente decidiu que ia começar a vender a droga em grande escala: ‘vou levar a marijuana até os EUA pra ver quem compra’. As coisas não ocorrem assim no capitalismo. Existem circuitos estabelecidos e são circuitos muito controlados. Estamos em um momento da historia do capitalismo em que temos grandes monopólios, oligopólios. O funcionamento das economias não é, de nenhum modo, de livre mercado e de pequenos produtores. E não pode ser em nenhum tipo de negócio, muito menos na droga que é um grande negócio. Das armas tampouco funciona assim. Como vamos pensar que isso é um negocio pequeno? Aí têm que estar grandes capitais. E os maiores capitais estão nos EUA.
Os grandes bancos onde o dinheiro do tráfico é lavado são norte-americanos. Também são de outros lados, mas são dos grandes capitalistas, dos grandes banqueiros do mundo. Não é um negócio diferente, em muitos sentidos, dos outros negócios. É um economia ilegal, mas é uma economia que tem regras de jogo muito parecidas com a dos outros setores.”
A violência e o projeto militarista de sociedade
“O que faz a ilegalidade? Se conecta com a violência. Justamente como é ilegal, tem que relacionar-se de outro modo com as instituições. Tem que relacionar-se de outro modo com a população. A competição se dá em outro terreno. Então, parte disso é o que há movido essa violência desatada. Não somente no México, mas em muitas partes.
Eu creio que o continente em seu conjunto está muito mais violento que antes. Mas, essa violência, serviu para desarticular os tecidos comunitários. Então não deve ser uma violência tão espontânea. Ou seja, foi dirigida de algum modo. O caso de Colômbia é muito ilustrativo, temos que ver com uma lupa. O que se fez muito lá com os paramilitares é que se dedicavam a plantar o terror e voltamos a esse ideia de comoção e pavor, que eu acredito que seja um critério básico que se repete em muitos níveis distintos. Plantar o terror é desestruturar a comunidade. Como as desestruturam? Bom, assassinam os homens, e provocam um problema ali de sobrevivência da comunidade não somente econômico, mas intergeracional; matam os jovens, lhes destroem o futuro; violam as mulheres, etc. Ou seja, ocorrem muitas coisas, mas ao mesmo tempo paralisam as pessoas, porque elas ficam com medo, como não vão ter medo? São coisas horríveis que acontecem. Como não vai ter medo se decapitam teu vizinho? Na sua frente… um vizinho que não tinha nada a ver com negócios ilegais. Ou seja, matam a uma pessoa comum, você também é comum, então tem que ter medo.
Então, essa é a dinâmica que se estabelece com a violência. No México, o que eu vejo é que isso vem crescendo a partir de 94. Nos primeiros anos do zapatismo se triplicava o gasto e a infraestrutura militar. E se compravam armas e gente que ia à Escola das Américas, etc. Mas, há ocorrido, sobretudo a partir dos anos 2000, de maneira muito mais organizada. Depois de 94, foi uma reação ao levantamento zapatista. Mas, agora já é um projeto militarista da sociedade mexicana. Então, o crescimento começa a ser muito mais sistemático, lhes aumentam o salário a cada tempo, nem se quer a cada ano. Felipe Calderón triplicou o salário dos militares em 4 anos. É impressionante. Ele entra e o primeiro que faz é aumentar o salario dos militares. Porque, claro, entrou pelas mãos deles, senão não teria entrado.
Porque ganhou Calderón? Quem colocou esse candidato tão débil? Como chega a ganhar um candidato assim? Porque seus credores o colocam para que ganhe e lhes pague a dívida. A quem ele tá pagando a dívida? A essa política militarista em grande medida.”
O exemplo da Cidade Juarez
“Ciudad Juarez é uma cidade na fronteira com os EUA que é muito perto do lugar onde operava Pancho Vila (um dos comandantes da Revolução Mexicana de 1910), sempre foi um lugar muito importante na história de México. Desde aí Pancho Vila invadiu os EUA. Mas, nessa cidade começam a ocorrer sequestros de mulheres jovens. Pegam uma mulher e a torturam, violam, matam… e seu corpo aparece o corpo por aí. É uma cidade onde tem muita indústria de maquilla (indústria de confecção, famosa pela superexploração do trabalho), na qual trabalham muitas mulheres, que são mulheres sozinhas, mães solteiras, estilo ‘mulheres indefesas’. Começou com uma, logo com outra, depois outra, começou a ser algo reiterado. E até agora são casos que não foram nem investigados. Muitas organizações de direitos humanos dizem que há provas de que o exército esteve envolvido. A polícia não investiga nada nem nunca encontra um culpado.
É uma coisa muito grande e muito difícil de entender, mas que serve para fazer declarações do outro lado. Os Estados Unidos se sentem ameaçados por uma situação assim em sua fronteira. Então, querem colocar um muro; fazem declaração de que isso é um risco para a segurança nacional e de que eles tem que tomar posição no assunto, porque o Estado mexicano não está podendo controlar essa cidade falida. Se é uma cidade falida então você tem o direito de defender-se dela, porque te está colocando em risco. Essa é a politica que nos vem desde lá.
Começou a estender-se essa situação em diferentes cidades fronteiriças. Numa cidade de Tamaulipas mataram o chefe da polícia. Nomearam outro e em duas horas o mataram. Nomearam outro e ocorreu o mesmo. Ninguém mais quer ser chefe da policia. Então, que acontece? Cidade falida outra vez. E começam a ter muitas cidades falidas por ai. Começam os EUA a insistirem muito em que a justiça mexicana é questionável. Começam a dizer que aqui não podemos julgar aos delinquentes vinculados ao narcotráfico, então temos que entregá-los à justiça estadunidense. Foi muito grave quando entregaram o primeiro porque, independentemente de quem tenha sido o fulano, que não era nem tão importante, se abriu um precedente de perda de soberania judicial nesse país. Houve alguns outros incidentes. Mataram a um estadunidense em Ciudad Juarez. Uh! isso foi o escândalo total. Porque aí sim, então, os EUA – depois que já mataram tantos mexicanos lá – podem intervir aqui.
Ou seja, ocorrem essas coisas que uns conspiracionistas diriam: “foi fabricado para permitir a intervenção e para ir fazendo as bases dessa intervenção”. Há pouco tempo, teve outra morte em Ciudad Juarez de um estadunidense. Entrou, então, a força de segurança dos EUA e trancaram uma rodovia. Eles decidiram fechar uma rodovia para investigar. Uma rodovia mexicana. Fechada por autoridades estadunidenses.”
O negócio da guerra
“Muda o tipo de violência no México a partir de 2006, quando começa a famosa guerra contra o narcotráfico. E essa guerra tem sido muito produtiva em termos dos negócios, que são justamente os ilegais, das armas, da droga, das máfias. Ou seja, ser máfia é um negocio. Não somente se vendem produtos, mas se vendem serviços. Que podem ser serviços de software, de organização administrativa, mas pode ser também serviços de matadores de aluguel, de mercenários.
Uma das empresas mais ricas nos Estados Unidos, que é a Blackwater, por exemplo, é uma empresa que produz tropas de elite e capacita o exército dos EUA, ou seja, está acima do exército, capacitando-o. É algo muito particular. A guerra hoje é muito privatizada e as vezes esquecemos disso. Então, um banqueiro que tem muito dinheiro e tem medo de ser sequestrado contrata um serviço de proteção privado. O problema é que esses serviços são armados. Podem matar… isso em princípio rompe com o monopólio da violência que tem que ter o Estado e isso não tem nada a ver com o Estado de direito. Existem atores soltos que, além disso, por segurança, são relativamente encobertos. Porque você não pode anunciar “eu sou Juan Perez, matador de aluguel, contrate-me, meu telefone é esse”. Não! Ou seja, é uma companhia que não revela seus dados, porque são ‘confidenciais’.”
O negócio da imigração
“Como fazem pra convencer um imigrante de que pague um “pedágio”? Imagine, um imigrante é um trabalhador muito pobre, que se vai porque não lhe resta opção em seu lugar de origem; que consegue, como seja, um pouquinho de dinheiro pra pagar todos esses pedágios que lhe vão cobrando até chegar aonde tem que ir trabalhar, que é no sul dos EUA, geralmente. Imagine o que é o esforço da família para mandar esse jovem, que as vezes é o filho mais velho, ou seja, um jovem no qual a família deposita toda a esperança e desde que sai de seu lugar vem sendo maltratado: por gangues, matadores de aluguel, policiais de imigração de diferentes lugares, todo mundo o maltrata.
Como o maltratam? Por exemplo, está um grupo de 30 imigrantes que vem num mesmo meio de transporte da América Central para chegar aos EUA. Então, pegam um deles, torturam-no diante dos demais, ou o matam, ou o mutilam, qualquer coisa dessas, para que os demais se convençam de que é melhor lhes dar o dinheiro. Ou seja, é uma violência vinculada a negócios ilícitos diversos, mas que nos está dizendo que não pode ocorrer se não há uma colaboração de autoridades, em nenhum desses lugares, incluindo EUA. Há uma colaboração de autoridades, há um problema de institucionalidades, um problema de Estado de direito.
Na última fossa que encontraram, os quatro últimos cadáveres eram de pessoas que estavam custodiando as fossas e morreram defendendo-as. Ou seja, são 4 mortos mais, mas que não pertenciam a fossa. Quem são? Quem cuida dessas fossas? Uma coisa que é forte também nessa historia da implantação da violência é que, igual que a Colômbia, não escondem muitas vezes os cadáveres, ao contrário, os cadáveres são expostos. Na Colômbia uma das coisas que mais me impressionou é que pegavam jovens de uma comunidade, o decapitavam, e no dia seguinte apareciam estacas com as cabeças na mesma comunidades. Imagina o que isso significa? Bom, aqui começaram a fazer coisas desse tipo. Os sequestradores te mandam um dedo, uma orelha, expõem cabeças, mas sobretudo te mandam os mortos. ‘Teu morto, aí está’. Isso já é outra coisa, me parece que não é uma violência comum, senão que uma violência pensada, com propósitos explícitos: querem atemorizar, paralisar.”
Quem lucra com a imigração
“A migração responde, assim muito elementarmente, a duas coisas: necessidade de trabalhadores baratos de um lado e uma carência de condição de reprodução do outro lado. Isso no México e nos Estados Unidos é velho, mas tem crescido muito. O México começou a perder autossuficiência, pois sempre foi um pais autossuficiente, ou seja, tínhamos um campo muito rico, fértil. Alimentos em abundância. Com a revolução verde e com muitas coisas como a industrialização, começa a mudar. Isso acentua a dinâmica econômica que havia entre essas duas economias. A partir de certo momento, também começa a ter uma indústria da migração. A rota dos migrantes é um negócio, como já falamos.
Depois tem Western Union (banco que faz transferência de dinheiro entre países) e as remessas, que são ao mesmo tempo um negócio e um elemento de interesse nacional. No México, em certos anos, se recebe mais de remessas do que de petróleo vendido ao exterior. E somos um país exportador de petróleo. E aos países centro-americanos, nem se fala, é um pilar das economias. E, claro, quando vem as remessas tem todas as comissões aos bancos , que é um negócio derivado disso. E tem muitas outras coisas, como os negócios dos celulares, etc. Mas há também a mudança do padrão de vida. Na fronteira dos EUA em época de natal ou de dia das mães, ou vem gente carregada de presentes, ou então mandam os objetos. Aqui tem uma loja que se chama Elektra que fazem esses envios de dinheiro, mas também é uma loja que vende eletrodomésticos. Então, a família do migrante vai lá buscar a remessa e ali mesmo tem todas as ofertas de tudo o que necessitas na tua casa, supostamente.”
“Nem tudo tem cor verde oliva”
“Efetivamente há uma visão militar e militarista do processo em seu conjunto. Hoje, a reprodução do planeta está pensada militarmente. Mas, isso não quer dizer que tudo tenha cor verde oliva e que tudo seja base militar. Há modos de pensar desde esse projeto militarista, de pensar a estratégia de disciplinamento social que tem que ver com politicas culturais e não com bases militares. E isso é algo que, de repente, não se percebe bem.
Eu penso que temos que fazer como um espectro amplo do que é o âmbito de ação dessa estratégia militarista em todos os espaços da vida social. E em cada um deles ir identificando os mecanismos que efetivamente tem a ver com essa estratégia. Não militarizam a universidade quando se muda os planos de estudo. A militarizam quando a ocupam os militares. Mas a mudança dos planos de estudo é parte desde uma estratégia pensada desde a perspectiva militar.
Na maioria dos lugares o que ocorre é que não são os militares, mas sim a polícia, que vai fazer a repressão, o disciplinamento. Ou são forças privadas, às vezes, essas que falávamos. Esses corpos de segurança contratados. Se fazem também através dos códigos penais, então quem são aí os atores? Os deputados. Ou seja, não um ator militar senão que politico, de representação social. Então é muito importante nos darmos conta de que quiçá é mais perigoso, por exemplo, o trabalho que faz a USAID com comunidades indígenas de transformação de mentalidades, porque é isso o que trabalham muitas vezes.
Aqui havia uma instituição que se chamava Instituto Linguístico de Verão. Trabalhava com a CIA e aqui esteve muito tempo na zona de Chiapas e Oaxaca. E trabalhava com os indígenas e era curioso, pois havia muitas regiões onde os indígenas falavam algumas das diferentes vertentes do idioma maia e inglês. Não falavam espanhol, por exemplo. Ou seja, esse tipo de trabalho é mais perigoso, pelo que implica em termos de construção de mentalidade, do que a instalação de uma base militar diretamente
A base militar tem seus efeitos, é também algo que temos que colocar muita atenção, mas não é o mais perigoso. O mais perigoso é que essa base militar é um ponto fixo para articular muitas outras coisas. As vezes a base militar pode afetar menos uma zona cerca e afetar mais uma mais longe, porque pode ser uma base mais pensada em termos de estratégia mais ampla. Tem que analisar todas as peças desse mecanismo de dominação. Nem tudo é militar.”
Quem é
Investigadora do Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Autônoma do México (Unam), a mexicana Ana Esther Ceceña é membro do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), coordenadora do Observatório Latino-americano de Geopolítica e integrante da Campanha de Desmilitarização das Américas (Cada).