Em 1998, 450 famílias Sem Terra ocuparam a área da usina Ariadnópolis, na cidade de Campo do Meio, Sul de Minas. O local, que então pertencia à Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (CAPIA) e que soma uma dívida de R$300 milhões de reais, faliu e encerrou suas atividades dois anos antes da ocupação em 1996.
O tempo passou e os quatro mil hectares em que apenas a monocultura de cana-de-açúcar predominava ganharam vida e hoje geram trabalho e renda para mais de duas mil pessoas.
Quilombo Campo Grande, como foi batizado o acampamento, atualmente concentra uma das maiores cooperativas de café do estado, a Guaií. Nela são produzidas 510 toneladas do grão por ano, que dão uma média de 8500 sacas de café. Além disso, 55 sacas de milho e 8 mil sacas de feijão são colhidas no local, que também divide espaço com 40 hectares de horta, que geram verduras e legumes para os acampados e para comunidades locais. No acampamento, também estão plantadas 60 mil árvores frutíferas e mais 60 mil nativas.
Ao longo dos anos as famílias se estruturaram, construíram suas casas sem apoio do poder público, se organizaram, trataram o solo e há décadas produzem e resistem em um território considerado massa falida pelo Estado.
Agora, toda a transformação social que acontece em Campo do Meio está sendo ameaçada. Nesta quarta-feira (7), uma ação judicial que foi a julgamento no Fórum da Comarca de Campos Gerais determinou a reintegração de posse e o despejo de todas as famílias do local. Aparentemente as conquistas dos anos de democracia não alcançaram o concreto dos dias: o Estado que está no papel não está presente na vida dos Sem Terra.
Legumes e verduras estão plantados em mais de 40 hectares de horta
Justiça seletiva
A decisão foi pautada no Decreto Estadual n.º 365/2015 que desapropriava 3.195 hectares da falida Usina Ariadnópolis. O documento tinha como proposta desapropriar a área mediante o pagamento de R$ 66 milhões à Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (CAPIA). Há dois meses, as famílias do Quilombo Campo Grande chegaram a firmar um acordo em que o Estado se comprometia a pagar o valor em cinco parcelas.
Porém, acionistas da empresa, apoiados pela bancada ruralista e latifundiários da região, não aceitaram o acordo e levaram o caso à Justiça contra o governo de Minas Gerais, pedindo anulação do decreto, que havia sido validado por dois julgamentos.
E, através de uma operação jurídica, os empresários retomaram uma liminar de despejo de 2012 referente à falência da usina, que, na época, foi negada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas não extinguida.
Na decisão proferida ontem num contraditório regime de urgência o juiz de Direito Auxiliar, em substituição na Vara Agrícola de Minas Gerais, Walter Zwicker Esbaille Júnior, determinou que os Sem Terra têm até o dia 14 de novembro para desocupar o local, a decisão também autoriza o uso da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais na ação.
A mesma ação reconhece o uso e a produção local, mas desconsidera o artigo 184 da Constituição Federal que diz que: “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”.
Para Darci Frigo, advogado e coordenador da organização de Direitos Humanos Terra de Direitos, ao determinar a ação de despejo, a justiça está desconsiderando a resolução n.º 10, de 17 de outubro de 2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que dispõe sobre soluções garantidoras de direitos e medidas preventivas em situações de conflitos coletivos rurais e urbanos.
“A resolução tem como objetivo orientar as autoridades e instituições públicas que tratam de situações de conflitos coletivos possessórios. São medidas que devem ser adotadas para a não violação de determinada coletividade. O juiz, que é um dos endereçados dessa resolução, deverá adotar e considerar uma série de medidas de acordo que sejam pautadas em seu conteúdo o cumprimento da função social da terra, que está garantido em Constituição Federal”, afirma.
Frigo ressalta o sentido da incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na Constituição, que, no caso do Brasil, garante direitos fundamentais como a cidadania e a dignidade da pessoa humana, diretamente negados às famílias neste processo.
O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais, como por exemplo, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que foi adotado pela XXI Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966. Esse acordo prevê que seus membros devem trabalhar para a concessão de direitos econômicos, sociais e culturais, incluindo os direitos de trabalho, à saúde, à educação e à um padrão de vida adequado.
«Fica aqui a pergunta: Esse direito está sendo garantido e repeitado no caso da ocupação Quilombo Campo Grande? O poder público deve orientar a solução de maneira pacífica e definitiva dos conflitos, primando pela permanência dos grupos em situação de vulnerabilidade nas áreas em que ocupam e reivindicam. O despejo não é inevitável, tanto que o Estado ao fazer um decreto por interesse social encontrou uma solução jurídica para o caso. O que acontece é que as forças políticas contrárias à Reforma Agrária, sejam do latifúndio ou ideológicas, encontraram respaldo no sistema de justiça em que o direito à propriedade se sobrepõe aos direitos humanos», alerta o jurista.
O que o Brasil prega enquanto Estado ao assinar resoluções de direitos humanos é que os direitos dessa coletividade devem preponderar ao direito de propriedade. A função social desse território só será de fato atendida se as famílias forem assentadas nesse local. Isso deve ser apresentado aos juízes responsáveis para que seja considerado na sua decisão os interesses maiores das responsabilidades que o Brasil tem com os direitos humanos.
O MST está recorrendo da decisão e as famílias reafirmam a disposição de seguir na luta e resistir contra mais essa investidas do projeto eleito, que tem como objetivo intensificar o uso de toda máquina do Estado para criminalizar e segregar ainda mais o povo Sem Terra.
Por Maura Silva
Da Página do MST