Na madrugada do dia 8 de março de 2006, 1.800 mulheres da Via Campesina realizaram uma das maiores ações contra o monocultivo de eucalipto no Rio Grande do Sul.
Organizadas, as mulheres ocuparam o viveiro hortoflorestal da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro, município que fica a cerca de duas horas de Porto Alegre. Na ação, elas destruíram estufas e bandejas de mudas de eucalipto.
A repercussão do protesto ampliou o debate sobre a monocultura de eucalipto e chamou a atenção da sociedade sobre os malefícios sociais, ambientais e econômicos desse tipo de cultura.
Por que a celulose da Aracruz
Em 2006, ocorria em Porto Alegre o encontro internacional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), entidade ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), para discutir a Reforma Agrária e o desenvolvimento rural.
As mulheres decidiram que era o momento de tornar visível para os países que participavam da conferência as consequências do plantio em grande escala de eucalipto. “As mulheres decidiram tornar público o que estava acontecendo com a terra, com os camponeses e com a saúde para o conjunto da sociedade. Decidiram que a Aracruz simbolizava essa denúncia e por isso a ocuparam e destruíram as sementes e as mudas do viveiro como uma forma de chamar a atenção da sociedade para o que representa esse modelo de cultivo”, afirma Ivanete Tonin, militante do MST.
O eucalipto precisa de muita água para o seu desenvolvimento. Originário de regiões úmidas da Austrália, a planta precisa em média de 30 litros de água por dia ao longo de suas fases de crescimento.
No Brasil, embora tenha muitos rios, não existem vastas regiões úmidas, portanto, o plantio em larga escala de eucalipto pode provocar desequilíbrios nas águas existentes na região de plantio. Como consequência disso, vai faltar água para plantas, consumo humano e animal.
Como suas raízes são muito profundas, o eucalipto seca várzeas, poços artesianos e vertentes, trazendo o ressecamento da terra de superfície na região e altera o regime de chuvas. A falta de umidade torna mais difícil a entrada de frentes frias e ocorrem mais estiagens, como as registradas na região sul do Rio Grande do Sul, onde se planta muito eucalipto.
Na época, a Aracruz Celulose era uma das maiores produtoras de pasta de celulose do mundo. Em 2006, no Rio Grande do Sul, a multinacional possuía 300 mil hectares de terra para plantar eucalipto, planta da qual se extrai a celulose. A intenção da empresa na época era chegar em 2015 com 1 milhão de hectares de terra plantadas no estado. Mais de 95% da celulose é para exportação.
O produto serve para a produção de papel higiênico, papel toalha, lenço, papel absorvente e demais produtos descartáveis, de acordo com o Com informações do informativo “O latifúndio dos eucaliptos: Informações básicas sobre as monoculturas de árvores e as indústrias de papel”, da Via Campesina do Rio Grande do Sul.
Essa situação, simbolizada pela Aracruz, fez com que as mulheres decidissem pelo ato. “Essa ação visava denunciar o conjunto desse padrão de produção que transforma os países pobres apenas em colônia. Nós ficamos apenas com o prejuízo”, relata Ivanete.
O ato durante a semana do encontro da FAO teve a intenção de alertar para as ações do governo federal. “O governo veio à Porto Alegre fazer propaganda de que o Brasil estava acabando com a fome. Mas na verdade, esse governo representa os interesses do capital no campo. É um governo que não faz Reforma Agrária e defende o agronegócio”, afirma Ana Hanauer, da direção estadual do MST.
Protagonismo na luta de classe
Além de denunciar o êxodo rural provocado pela expansão das áreas de plantio da monocultura do eucalipto, a expulsão de pequenos agricultores de áreas próximas em função da escassez de água e também as péssimas condições dos trabalhadores que são contratados sem direitos trabalhistas pelas empresas do setor, a ação teve forte repercussão dentro dos movimentos sociais, da esquerda em geral e na sociedade.
“O 8 de março de 2006 representou a afirmação e a construção de um feminismo proletário contra o capital. Porque até o momento, o feminismo era muito vinculado à classe média, às demandas que são importantes para as mulheres, mas até então não tínhamos uma ação mais concreta de enfrentamento com o capital,” explica Claudia Teixeira, do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD).
A ação na Aracruz deu maior visibilidade às lutas das mulheres da Via Campesina. Até então, eram realizadas atividades na linha de afirmar a presença das mulheres nos diferentes setores na perspectiva dos direitos.
Em 2006, as mulheres se tornam protagonistas do ponto de vista da luta contra o capital. “Chegamos no momento de dizer que neste modelo de sociedade, nem homens nem mulheres tem vida. Também teve uma repercussão grande nos movimentos, pois as mulheres assumiram todas as instâncias da preparação do ato. Isso representou um empoderamento interno muito importante”, avalia Sarai Brixner, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
A manifestação também representou a primeira ação mais forte de mulheres do MPA. “Significou, então, um marco histórico para nós enquanto movimento social de luta das mulheres. Além disso, a ação revelou toda uma discussão sobre monocultura, transgenia e contaminação do meio ambiente com a produção de pasta de celulose,” afirma Rosieli Lüdtke, do MPA.
Na Via Campesina, as mulheres entravam em um período de ascensão, no qual participavam mais intensamente dos debates e das questões de gênero. “Essa ação nos projetou enquanto referência política de luta de classe. Nós temos que responder a altura e isso ultrapassa as pautas dos movimentos”, explica Ana Hanauer, do MST.
A ação representou uma reafirmação de uma luta maior contra o capital e revelou, conforme Ivanete Tonin, a ideia de que não há libertação das mulheres sem a destruição do capital. “A libertação das mulheres não se dá somente dentro de casa, ou nas relações, mas sim na construção de um outro modelo de sociedade. A opressão das mulheres também está fundada na sociedade capitalista,” afirma Ivanete.
O protagonismo das mulheres na ação também é destacado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). De acordo com Patrícia Prezotto, as mulheres começam a pautar a luta de classe. “Foi um momento histórico para as mulheres. Elas começam a não aceitar o que o capital impõe. Essa ação na Aracruz demonstra que as mulheres têm condições de fazer a luta contra o capital,” salienta Patrícia.
A identificação do capital como o grande inimigo da classe trabalhadora também foi um dos acúmulos da luta. “2006 traz para nós a discussão da celulose e da monocultura, pois até então a sociedade não percebia o mal que representa para a humanidade esse tipo de cultura,” relembra Izanete Maria Colla, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).
Além disso, a construção da luta na Aracruz representou uma unidade mais forte entre as mulheres. “As mulheres se identificaram, pois a ação bateu forte na questão do monocultivo, na questão ambiental e na questão do capital. Isso fortaleceu muito os movimentos que participaram da luta”, diz Elci da Paz, do MMC.
Outro aspecto é que a luta do 8 de março de 2006 questionou a opção de parte da esquerda de apostar no processo eleitoral para fazer mudanças estruturais na sociedade em favor dos trabalhadores. “Aquela ação mostrou que as mulheres pobres que se movimentavam ali não se sentiam incluídas neste poder, na medida em que denunciavam que o governo Lula liberou os transgênicos e flexibilizou as leis ambientais. Então é uma ação que também chocou por questionar essa via de fazer a luta”, explica Ivanete.
Reação da sociedade
As mulheres avaliam que em um primeiro momento, a reação imediata da população foi de criticar e condenar a ação, principalmente pela influência da mídia buguesa, mas depois que o assunto começou a ser debatido, muitas pessoas passaram a ver a ocupação da Aracruz com outros olhos e a apoiar a luta contra a monocultura do eucalipto.
“Uma parcela importante da sociedade entendeu que as mulheres destruíram aquilo que viria a destruir a terra, secar os rios e causas uma série de problemas, inclusive para a saúde”, avalia Neiva Vivian, do MST.
Entretanto, devido à abordagem da mídia que tratou a ação como um crime e defendeu a empresa, ignorando os impactos da monocultura para a população e o meio ambiente, alguns setores da sociedade ainda não compreenderam a importância da destruição do viveiro da Aracruz. “Nós não somos contra a tecnologia, nós somos contra uma tecnologia quando está apenas em função do lucro,” relata Ivanete.
A ação na Aracruz está no contexto da condição de barbárie que as mulheres vivem na sociedade capitalista patriarcal. “Nós mulheres não temos nada a perder. E esse gesto de radicalidade é compreensível a partir do momento em que as mulheres dizem que só o socialismo que resolve o problema das mulheres. Não é possível remediar em nenhum aspecto. Não tem reforma, não tem ação governamental que amenize a condição de opressão da mulher na sociedade em que a gente vive”, sintetiza Ana.